Jerry Nugget e os baralhos cult
Cult é um anglicismo que está incorporado à nossa língua há muitos anos. Refere-se a um produto da cultura popular - seja um objeto, uma obra artística como um filme ou peça de teatro, uma ideia ou até uma pessoa - cultuada por um grupo de fãs de maneira veemente, dogmática e até fanática. Na sua etimologia encontramos referências àquilo que inspira, que é respeitado, que é querido. São comuns os filmes cult. Star Wars (Guerra nas Estrelas) é talvez a mais famosa série de filmes cult atual, com fãs em todas as idades e locais.
São vários os fatores que tornam algo cult. Nem todos sempre claramente identificados. Muitas vezes encontramos um ar de mistério, de obscuridade, de redescoberta naquilo que se considera como tal. E nem sempre algo cult encerra boa qualidade, embora seja um fator presente com frequência. Até porque qualidade é muito subjetiva.
A amplitude do conceito permite que alguns baralhos possam também, eventualmente, serem adjetivados como cult. Sendo produtos populares, alguns reúnem fatores que os tornam reverenciados por grupos de admiradores, particularmente mágicos e cardistas. Vamos a alguns casos:
Tahoe Nº 84- Fabricado por Arrco Playing Card Co. de Chicago, até 1987, quando este fabricante foi adquirido pela United States Playing Card Co. (USPC). Sua qualidade especial era enfatizada por ter as cartas envoltas em papel alumínio. Derek Dingle, para citar um importante mágico americano, usava extensivamente os Tahoe. Em 2011 os irmãos Dan & Dave Buck reeditaram a marca, com fabricação pela USPC, em edição numerada de 2.500 exemplares. Manteve-se o invólucro das cartas em papel alumínio. Outras edições mais simples usando a marca evidenciam seu lado cult entre mágicos e colecionadores.
(Fig. 1- Tahoe)
Texan Nº 45 (Palmettos)- Esta marca foi criada em 1892, então fabricada pela National Playing Card Co. em sua unidade de Indianapolis, EUA. Em 1914 a International Playing Card Co, de Windsor, Ontario, Canada, passa a distribuir a marca para o Caribe e Oriente Médio. Passou a ser oferecida como um produto de qualidade do distribuidor. Mais recentemente, já fabricados pela USPC, os Texan Palmettos foram "descobertos" por terem uma propriedade do desenho de seu dorso que permitia a identificação de cartas e conjuntos de cartas. Jeff Busby exaure o tema em um livro de 124 páginas, denominado Secret of the Palmettos, editado em 1998. Embora com produção atualmente descontinuada, o modelo ainda é cultuado e usado por mágicos.
(Fig. 2- Texan Palmettos)
Aristocrat - Um dos admiradores e utilizadores desta marca foi Dai Vernon, ainda na década de 1920 / 1930. Originalmente produzida por American Bank Note (ABN), passou a ser designado Aristocrat quando Russel & Morgan (um dos formadores da USPC) adquiriu ABN em 1916. Descontinuada, foi revivida por USPC em edição especial de 2011, possivelmente induzida pelos irmãos Dan & Dave. A marca foi muita usada por mágicos antes do popular Bicycle Rider Back (hoje Bicycle Standard) se tornar o padrão dos cartomagos em todo o mundo.
(Fig. 3- Aristocrat)
Peau Doux- Cardini identificou este baralho, editado pela rede de drugstores Walgreen's, como ideal para as manipulações de seu famoso ato. Isto fez com que adquirisse todos os exemplares então disponíveis a venda (década de 1930), e exigisse que o editor descontinuasse sua comercialização. A marca e modelo tornaram-se exclusivos de Cardini (detalhes disso podem ser lidos em resenha específica neste mesmo site). Embora de uso restrito tornou-se um baralho cultuado por colecionadores de mágica em geral. Tanto que uma reedição da marca, seguindo as características básicas do original, foi editada em 2017 por Art of Play, para satisfazer colecionadores que não conseguiam exemplares do produto original pelos elevados preços, em escassos lotes oferecidos em casas de leilões que adquiriram os exemplares existentes após a morte de Cardini.
(Fig. 4 - Peau Doux)
Veja o Artigo completo sobre este baralho, clicando AQUI
Absolut - Em 2005 a vodka Absolut editou baralho para promover sua marca em locais em que pretendia popularizar seu produto. Vários mágicos como Kostya Kimlat, Lee Asher, Doug McKenzie e Daniel Garcia, foram contratados para executarem seus números com cartas, usando esse baralho especial. Os baralhos, que continham receitas de coquetéis usando a vodka, eram distribuídos entre o público em geral. Produzido com cartas de pequena espessura, mas com acabamento superficial do tipo liso, de excelente qualidade, tornaram-se admirados por mágicos. Apesar de ter produção restrita ao período da campanha publicitária, conseguem ainda hoje valores elevados em lotes oferecidos na eBay, por exemplo.
(Fig. 5 - Absolut)
Massa- fabricado em torno de 2009, este baralho foi identificado pelos irmãos Dan & Dave como de qualidade excepcional para cardistry e mágicas. De fato, apresentam acabamento superficial ótimo. Fabricados por uma desconhecida Casino Playing Card Ltd, que, segundo fontes não confirmadas, pertenceria a certo Michael Massa, que empregaria em torno de 10 funcionários, apenas.
(Fig. 6 - Massa)
Mas entre esses (e outros aqui não citados) a marca mais popular - mais cult - entre mágicos até o momento é, sem dúvida a do baralho Jerry Nugget.
No início da história, apenas um cassino...
Em 1964, quando Las Vegas iniciava sua fama de polo dos jogos de aposta nos Estados Unidos, Jerry Lodge e Jerry Stamis fundaram o Jerry Nugget Casino. Foi localizado no norte de Las Vegas, área ainda pouco explorada naquela época. A marca do cassino foi caracterizada por uma torre de perfuração de petróleo, com o nome do cassino estampado. Isso ainda pode ser visto na frente das suas instalações, ainda existente em Vegas.
Em 1970 foram encomendados pelo cassino baralhos com o dorso retratando a famosa "torre" característica do local. A empresa contratada para a fabricação do lote foi a USPC, então com fábrica em Cincinnati, Ohio. A encomenda chegou ao cassino, mas por alguma razão desconhecida foi estocada sem nenhuma utilização durante 20 anos! Li (ou ouvi) em alguma referência sobre os baralhos, que teriam apresentado certa diferença de simetria que os desqualificava para uso nas mesas de jogo. Esta hipótese não é, no entanto, confirmada por nenhuma fonte especializada neste baralho.
(Fig. 7 - Dorso Jerry Nugget)
Depois destes 20 anos em estoque os baralhos passaram a ser vendidos na loja de souvenir do cassino, por cerca de US$ 2,00. Em 1999 o mágico e colecionador francês Dominique Duvivier teria adquirido os remanescentes 40.000 maços. E o cassino nunca mais se interessou em renovar esse lote.
Mas mesmo antes desta compra o baralho passou a ser conhecido pelo meio mágico. E vários cartomagos famosos passaram a identificar nele uma qualidade excepcional, um deslizamento perfeito, um corte extraordinário, tornando o baralho seu preferido para execução de seus números mais sofisticados. Nomes como Dai Vernon, Larry Jennings. Ed Marlo, Lee Asher, Simon Aronson e outros "mitos" da cartomagia, passaram a cultuar o Jerry Nugget como algo especialíssimo, peculiar, único da marca. Um verdadeiro cult.
Este entusiasmo teria como base o tipo de acabamento superficial usado pelo fabricante. O relevo que torna as cartas mais fáceis de serem abertas (em leque, por exemplo), foi aplicado em apenas uma dos lados (no dorso), enquanto a frente das cartas é mantida com acabamento liso. Além disso, teria sido usado um verniz especial para acabamento das cartas, hoje descontinuado por razões ambientais, mas na época ainda aceito sem restrições.
Como todos os baralhos produzidos à época por USPC o corte das cartas ainda seguia o padrão "tradicional", ou seja, o corte era executado da face para o dorso. Este método produz cartas que permitem com maior facilidade o embaralhamento sobre a mesa, em especial quando se utiliza a técnica "faro".
O curioso, no entanto, é que estes atributos do Jerry Nugget não eram exclusivos da marca. Eram padrões do fabricante e usados em vários outros produtos da época. Jason England destaca isso em um artigo que escreveu para a revista Magic, em agosto de 2010. Explica que vários baralhos produzidos para outros cassinos da época também usaram o mesmo acabamento e corte dos Jerry Nugget. Segundo este autor, especializado em baralhos e em mágica, encontramos baralhos com o mesmo tipo de cartão e acabamento superficial nos cassinos Golden Nugget, Carson City Nugget e no Dunes, por exemplo.
Por que então a fama ficou exclusivamente com o Jerry Nugget? Realmente não se sabe! Especularia que o fato de ter ficado muito tempo sem ser comercializado fez com que fosse "descoberto" em uma época em que os baralhos então correntes apresentavam características diferentes (inferiores?) à que se verificava ainda nos Nugget. Apenas especulação! Mas o fato é que a marca passou a ser cultuada por mágicos e, posteriormente, por amantes da cardistry¸ os malabaristas dos baralhos.
(Fig. 8 - Folheto de garantia Jerryland)
O mito: cultuado, admirado e garantido!
A fama se espalhou. Vários livros de cartomagia que usam fotos em suas explicações exibem com orgulho exemplares do Jerry Nugget! Vídeos de manipulação com cartas, sejam de mágica ou cardistry, apresentam esses maços, destacados pelo característico dorso.
O advento da eBay como forma eficaz de venda de produtos, especialmente colecionáveis, logo estabeleceu padrões de preço elevados para esses baralhos. E começam então a surgir vários exemplares "piratas", produzidos para ludibriar incautos compradores atraídos pela fama dos exemplares. Ao lado de cópias de evidente baixa qualidade encontramos exemplares difíceis de serem identificados como falsos. Um dos especialistas no Nugget, o mágico Lee Asher me disse que tão perfeitas eram algumas dessas cópias que a única maneira confiável de identificar um exemplar legítimo era abrir com um canivete ou algo similar a parte lateral do estojo. Oculto pelo flap colado, apenas um legítimo Nugget apresenta estampado o número 1970, data da fabricação original. Pergunto-me se hoje este detalhe já não teria sido incorporado até pelos falsos editores?
Outra forma de obter um exemplar original legítimo é adquirir de uma fonte segura. Uma delas foi estabelecida pelo próprio Lee Asher. Adquirindo lotes confiavelmente originais, passou a comercializá-los em leilões exclusivos. Todos os exemplares seguem com um certificado da "Jerryland", em que é garantida a procedência e autenticidade do exemplar. Todos são numerados permitindo seu rastreamento nos lotes originais.
O mito revivido!
Mas muita gente que gostaria de ter um Nugget não tem eventualmente acesso aos leilões restritos em que são oferecidos, e mesmo aos preços que um original alcança. Estamos falando aqui de cerca de US$ 500,00 ou mais. Foi então que Lee Asher e Bill Kalush, este sendo um empreendedor importante do ramo mágico ao estabelecer a Conjuring Arts Research Center - CARC resolveram reeditar os Jerry Nugget. Para isso contataram o cassino, que deveria, por razões de marca, aprovar o projeto. Com esta formalidade resolvida, utilizaram a Expert Playing Card Company (EPCC), ligada à CARC, e responsável pela edição de vários baralhos. Através de um projeto Kickstarter foram obtidos os fundos financeiros para a edição de uma nova série "oficial" de Nuggets!
Mais de 4.000 pessoas apoiaram o projeto, originalmente planejado para obter US$ 15.000,00, mas que conseguiu quase US$ 500.000,00! O que comprovou o quão cult é o baralho!
A produção dos novos Jerry Nugget foi encomendada a USPC, usando agora a sua Web Press, que garante extra qualidade, com processo mais moderno do que o usado na versão original, em que cada exemplar era impresso individualmente. Neste sistema vários exemplares são impressos ao mesmo tempo em um processo similar (mas muito mais sofisticado) ao de uma impressora de jato de tinta.
O novo e o original: diferenças e semelhanças
Estojo
O novo modelo é praticamente igual ao original. Nota-se uma pequena diferença de tom na coloração da cor de fundo dos dorsos, que são retratados em ambos os lados do estojo. Pelo citado em algumas referências a estrutura de construção do estojo era diferente na época da edição original, detalhe notável apenas se o estojo for desmontado. No caso da edição original esta é uma das formas de se certificar tratar-se de um Jerry Nugget pioneiro. O flap de fechamento do estojo é maior na versão original do que na moderna, talvez em função da nova estrutura de estojos usada por USPC.
Ambos os modelos apresentam o fitilho de abertura na cor vermelha, outro elemento de reconhecimento de um Nugget original.
O selo de fechamento do modelo novo segue o padrão do original, que na época, era constituído por um selo como os usados em correspondências, com cantos picotados para permitir o corte e separação. A colagem do selo é descentralizada da meia lua de abertura do estojo, também característica do original e seguida no novo modelo.
A única diferença mais notável é a parte inferior, que no original apenas indica "North Las Vegas - Nevada" e no modelo novo indica várias informações sobre o fabricante e editor, além de, principalmente, identificar esta edição como "Modern Feel 1st Edition", distinguindo-a claramente da original. Ao que parece o editor pretende produzir outras séries, o que poderá tornar esta também de certa maneira "cult" em especial.
Material, acabamento superficial e corte
Esta talvez a propriedade mais cultuada no Nugget. A diferença entre a face (lisa) e o dorso (rugoso) da edição original é citada como de excepcional qualidade pelos amantes dessas cartas. Também o tipo de verniz usado traria características de deslizamento especiais. Nota-se, no entanto, que o modelo atual também oferece qualidade muitíssimo boa de acabamento superficial, agora sendo do tipo rugoso em ambos os lados das cartas e utilizando um tipo de verniz ecologicamente mais correto que o da edição original. A produção usando a moderna Web Press oferece um acabamento especial, de resto notável na maioria dos modernos baralhos produzidos por USPC.
Isto enfatiza minha tese especulativa que o mito sobre o Jerry Nugget original se deve a ter apresentado à época em que foi comercializado uma qualidade melhor que os então produzidos. A evolução dos processos de fabricação oferece agora um produto talvez até superior. Mas cult é cult...
Segundo informações do editor a edição moderna utilizou cartão premium, usado para os baralhos da marca Bee, comuns no suprimento de cassinos. Na edição original encontramos espessura de 0,28 mm por carta, enquanto a edição atual apresenta espessura de 0,29 mm. Diferença indetectável ao tato comum de quem as manipula.
O corte atual segue o tipo tradicional, acompanhando o padrão usado pelo fabricante nos baralhos produzidos na época do Nugget original. Atualmente somente baralhos em produção especial seguem este padrão.
Composição das cartas
As folhas utilizadas pela USPC na década de 1970 compunham baralhos com 54 cartas: 52 + 2 curingas (representados por figuras com as torres de petróleo desenhadas em preto apenas, marcas do cassino). Esta a composição de um Nugget original.
Os atuais sheets (folhas antes do corte das cartas) do fabricante são agora formados por 56 cartas. Assim, a nova edição, além dos dois curingas iguais aos originais (com ligeiras diferenças nos tipos das letras usadas), inclui outro curinga igual, mas em vermelho, além de outra carta com frente branca e dorso quase todo em branco, mas com a "torre" característica em vermelho e azul, na parte central da carta, sem bordas.
Figuras e cartas numerais seguem o padrão do fabricante, usado em ambas as edições. A ordenação das cartas segue o mesmo padrão da USPC, com os dois "reis que se beijam" bem no centro do baralho.
O dorso mantém-se igual ao original, com desenho das torres de perfuração em fundos azul ou vermelho, em cores sólidas.
E algo mais...
Completando o projeto Kickstater dos baralhos o editor acrescentou outros produtos à série nova. Outros tipos de dorso, baralhos com cartas gaff, estojos tipo brick para armazenamento de dúzias e outros estojos para colecionadores, entre outros acessórios, também foram oferecidos.
Conclusão
Quem não teve (pelo menos por enquanto) condição de ter um Jerry Nugget original, pode agora ter um similar em desenho e, em alguns aspectos até com superior qualidade.
Temos aqui um baralho de produção cuidadosa, por verdadeiros especialistas no tema. Sem dúvida uma peça que atende a usuários comuns e a colecionadores. Revive-se um mito, um cult, com precisão e carinho.
Atende tanto aos apaixonados pela marca original, quanto aos novos admiradores. Aos primeiros oferece a oportunidade de usarem o modelo de forma mais extensiva, sem "gastarem" suas preciosidades. Aos novos a possibilidade de terem em mãos uma lenda do mundo do baralho, a preços e condições de obtenção acessíveis. A ambos a possibilidade de manterem vivo o mito do modelo em seu dia a dia, para mágicas ou cardistry. Segundo os editores, isto seria o objetivo desta nova edição. A pretensão dependerá, naturalmente, da manutenção da produção em quantidades e qualidade regulares. Vejamos!
Texto de Cláudio Décourt (Ruberdec) - Fevereiro de 2020
Parabéns pela excelente didática!